CENSURA DE ÓPERA NA ALEMANHA REVELA DISPUTA RELIGIOSA


Nada existe de sagrado para o moderno teatro alemão, muito menos símbolos religiosos. Há alguns anos uma vaca foi crucificada no palco, com a língua de fora. Nem os clássicos escapam de interpretações revolucionárias (ou absurdas, dependendo do ponto de vista), o que já virou uma tradição: já se encenou o "Anel dos Nibelungos" com as valquírias como prostitutas, Sigfried trajando smoking e o Reno transformado numa represa imunda -e tudo isso no próprio teatro construído por Richard Wagner.

Mas em Berlim a responsável pela Deutsche Oper, uma das casas de ópera mais importantes do planeta, pôs um fim ao que ela considerou ser um abuso na dessecração de símbolos. Uma ópera escrita há mais de 200 anos por Wolfgang Amadeus Mozart -"Idomeneo"- foi cancelada devido à cena final, na qual o diretor Hans Neuenfels incluiu, além da cabeça decepada do deus grego Poseidon, outras três cabeças: as de Jesus, Buda, e Maomé. Uma maneira, disse Neuenfels, de criticar a todas as religiões.

A estréia dessa encenação do clássico em dezembro de 2003 em Viena já havia causado algum tumulto, mas apenas na sala de espetáculo. Foi o Serviço de Proteção à Constituição (um eufemismo para polícia política) de Berlim que chamou a atenção, num relatório de rotina, para a possibilidade de que a reapresentação de "Idomeneo" na capital alemã pudesse provocar protestos na enorme comunidade muçulmana no país. Berlim é conhecida como a pequena Istambul, devido ao grande número de imigrantes turcos, e uma das linhas de metrô já foi batizada de Expresso do Oriente.

Quem acabou crucificada foi a responsável pela Deutsche Oper, Kirsten Harms, a mulher que tomou a decisão de cancelar "Idomeneo" com cabeças cortadas. Ela foi acusada de praticar uma auto-censura irresponsável, e de se "ajoelhar diante de terroristas", por políticos conservadores -os mesmos que quiseram censurar a MTV alemã, no começo do ano, por conta de um comercial que mostrava Jesus Cristo descendo da cruz e distribuindo panfletos. Ela tomou pancadas de intelectuais que a acusaram de violar um dos valores essenciais das artes (o da liberdade de se exprimir, especialmente na sátira) -os mesmos intelectuais que criticaram o Papa Bento XVI, na semana anterior, por não levar em conta as suscetibilidades islâmicas ao citar um texto medieval sobre Maomé.

Provavelmente o Mozart montado por Neuenfels teria excitado apenas os críticos nos cadernos de cultura da imprensa em alemão (uma tradição riquíssima na Alemanha, Suíça e Áustria) não estivesse a União Européia diante de uma decisão de profundo significado histórico: aceitar ou não a Turquia, um país muçulmano. Se os atentados terroristas recentes não tivessem mostrado, de maneira sangrenta, como sociedades seculares (as européias) estão de novo diante dos mesmos problemas de tolerância e convivência. E se a profunda desconfiança de países muçulmanos, especialmente no Oriente Médio, em relação ao Ocidente não tivesse se tornado ainda mais profunda.

Sobra cada vez menos espaço para o bom senso, como foi demonstrado pelo episódio das caricaturas sobre Maomé, as palavras do Papa e, agora, o cancelamento da Ópera de Mozart, anunciado, por irônica coincidência, no mesmo momento em que o governo alemão promovia uma ambiciosa "conferência islâmica", na qual representantes do mundo muçulmano e do mundo secular europeu estão reunidos (a conferência termina sexta feira), sem a presença da imprensa, para tentar um diálogo a longo prazo. Uma das primeiras decisões da conferência, aliás, foi anunciar que seus participantes gostariam de assistir, juntos, à encenação do "Ideomeneo" censurado.

Na obra original, Mozart trata de violência política e da covardia de poderosos que prometem qualquer coisa aos deuses apenas para continuar onde estão. Idomeneo, o rei de Creta, promete ao deus Poseidon sacrificar seu próprio filho. Mas, no final, é o amor que triunfa: o filho é salvo e Idomeneo tem de renunciar.
Final feliz é só em ópera mesmo.

William Waack

Fonte: G1

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