A Revolução Francesa de 1789 - Parte Dois

 
A Assembléia Nacional
 
De certa forma era previsível o que aconteceu. A nação emudecida por dois séculos, tendo que assistir em silêncio respeitoso os desastres da monarquia Bourbon, só contando com os homens de letras como seus defensores, quando deixaram-na falar nos Estados Gerais, ela não mais se calou. O próprio rei havia aberto as comportas. A enxurrada em breve iria afogá-lo.
No dia 17 de junho, o Terceiro Estado, numa astuciosa manobra do abade Sieyès, já em fase de pré-rebelião, proclamou-se Assembléia Nacional, transformando-se em representante e órgão supremo do povo. Essa medida provocou a indignação de Luís XVI, pois ele convocara os Estados Gerais para que o auxiliassem a superar a crise, não para que se revoltassem contra a sua autoridade. Mas o seu poder rapidamente entrou em processo de corrosão. Parte da coragem dos representantes devia-se aos chamados cahiers doléances, os cadernos de queixas, que continham os reclamos do povo, trazidos por eles nas suas bagagens quando vieram para a reunião em Versalhes. A insatisfação com o regime era evidente, mas ainda estava longe de prever-se uma insurreição. As ordens privilegiadas, a nobreza e o clero, quando sentiram que o rei pouco mais poderia lhes dar, começaram a debandar para o lado do Terceiro Estado.
Em 20 de junho, o rei ordenou a dissolução da assembléia, mandando a guarda suíça evacuar a sala dos trabalhos legislativos. Os deputados, porém, contando com a defecção de vários parlamentares das ordens privilegiadas, não se renderam. Reuniram-se então num outro local, na sala do jogo de pela (antigo jogo de raquetes, semelhante ao tênis), e lá juraram que não se separariam enquanto não dotassem a França de uma Constituição. Com tal ato, o legislativo, assumindo estar falando em nome do povo inteiro, praticamente rompeu com o absolutismo. Foi nesse momento de grande tensão e forte emoção que despontou a oratória veemente de Honoré Gabriel Victor Riqueti, o controvertido conde de Mirabeau, fazendo dele o grande tribuno do Terceiro Estado e a primeira personalidade da revolução.


reprodução (desenho de David)
O juramento da sala do jogo de pela


Mirabeau tribuno 

Eleito pelo Terceiro Estado, Mirabeau, com seu vozeirão tonitruante, enfrentou diretamente M. de Brézé, o enviado do rei quando esse viera, em 23 de junho, com a missão de dissolver a Assembléia. Disse-lhe que somente o povo francês, a quem os parlamentares representavam, podia cassar os deputados e que eles dali não sairiam: "declaro-lhe que, se está aqui para nos fazer sair, deve pedir ordens para usar a força, pois nós só deixaremos os nossos postos pela força das baionetas". Em seguida, proclamou-se a inviolabilidade parlamentar. Nenhum deputado doravante poderia ser preso pelo motivo que fosse sem autorização da Assembléia Nacional. No nove de julho, ela transformou-se em Assembléia Constituinte, com o propósito de instituir uma nova ordem social. Confirmava-se a rejeição da monarquia absolutista. O rei, desgastado, e como que atacado por uma paralisia, não pôde se opor. O absolutismo cambaleara mas ainda não caíra. Quanto a Mirabeau, mais tarde confirmaram-se uma série de suspeitas nas quais ele teria se vendido aos interesses da Corte. Marat, num artigo premonitório no seu jornal O Amigo do Povo, em maio de 1790, dissera dele: "reduzido à prostituição para viver (em certa época da sua vida, Mirabeau ganhara uns trocados escrevendo literatura licenciosa), ele venderá a sua consciência ao o que oferecer mais. Que se pode esperar de um homem sem princípios, sem costumes, sem honra? Alma dos gangrenados, dos conjurados e dos conspiradores". 



A insurreição popular 
Quando informaram-no que o povo havia tomado a Bastilha num assalto sangrento, o rei Luís XVI reagiu com assombro:
- Mas isso é um motim!
- Não, senhor. Não é um motim, é a revolução - respondeu-lhe um palaciano.
O incrédulo Luís XVI estava perplexo, mas a revolução estava mesmo nas ruas de Paris. A subversão de ordem política já ocorrera com a proclamação da Assembléia Nacional Constituinte, a nove de julho de 1789. Faltava a insurreição popular, que não tardou.

Os amotinamentos, arruaças, incêndios e refregas, recrudesceram pela França inteira desde o início de julho. No dia 12, com a demissão do ministro Jacques Necker - considerado o único reformista do governo monárquico - as tropas reais concentraram-se em Versalhes e Paris para tentar evitar novas tropelias. O povo, protestando contra o afastamento da sua única esperança, saiu às ruas. Houve enfrentamentos. No dia seguinte, mais tumultos. Os motins de fome se alastravam. Logo pela manhã, após um alarme, os remediados de Paris encheram os largos e vielas armados de machados, pistolas, pedras e porretes. As tropas reais foram abandonando a cidade, bairro após bairro. Os revoltosos, então, assaltaram os armeiros e os arsenais militares, levando centenas de espingardas. 

reprodução (gravura de Prieur)
A sublevação popular em Paris 



A Bastilha
No dia 14 de julho a multidão, que estava submetida as fortes tensões dos últimos dias, resolveu atacar a Bastilha (uma fortaleza-prisão construída por Carlos V, entre 1369 e 1382, com oito torres, muralhas de 25 metros de altura cercadas por fossos). Ela era o símbolo do despotismo. Pairava sobre Paris como um feiticeiro, um bruxo, ou ainda um bicho-papão, que, saindo na calada da noite, indo invadir as casas para arrancar suas vítimas do leito e do aconchego da família, as conduzia algemadas, sem nenhuma formalização de culpa, para os carcereiros. Os habitantes de Paris imaginavam-na um local onde o inominável acontecia. Diziam que torturas e punições indescritíveis tinham seu sítio lá.
Era a representação concreta do pode-tudo dos privilegiados pois permitia aos nobres, graças às cartas assinadas em branco pelo rei (as famosas lettres du cachet), a usar suas instalações como cárcere dos seus desafetos.
O embastilhado necessariamente não era informado do seu delito, nem por quanto tempo ficaria preso. Poderia ser encalabouçado por alguns meses, como ocorreu com Voltaire, ou chegar a cumprir 37 anos como se deu com o infeliz Latude.
Nos últimos tempos ela estava desativada. Quando a assaltaram havia apenas sete presos em suas masmorras, nenhum deles fora detido por motivos políticos. Mesmo assim a sua sombra parecia cobrir Paris inteira, sendo que do alto dos seus torreões as sentinelas posavam como se fossem gárgulas vivas, os olhos do velho regime, tudo vendo, tudo cuidando, em estado de alerta contra todos. 




O assalto à Bastilha 

reprodução (desenho da época)
O assalto à Bastilha, 14 de julho de 1789
A grande prisão do estado terminou sendo invadida porque um jornalista, Camille Desmoulins, até então desconhecido, arengou em frente ao Palais Royal e pelas ruas dizendo que as tropas reais estavam prestes a desencadear uma repressão sangrenta sobre o povo de Paris. Todos deviam socorrer-se das armas para defender-se. A multidão, num primeiro momento, dirigiu-se aos Inválidos, o antigo hospital onde concentravam um razoável arsenal. Ali, apropriou-se de três mil espingardas e de alguns canhões. Correu o boato de que a pólvora porém se encontrava estocada num outro lugar, na fortaleza da Bastilha. Marcharam então para lá. A massa insurgente era composta de soldados desmobilizados, guardas, marceneiros, sapateiros, diaristas, escultores, operários, negociantes de vinhos, chapeleiros, alfaiates e outros artesãos, o povo de Paris enfim. A fortaleza, por sua vez, defendia-se com 32 guardas suíços e 82 "inválidos" de guerra, possuindo 15 canhões, dos quais apenas três em funcionamento. Durante o assédio, o marquês de Launay, o governador da Bastilha, ainda tentou negociar. Os guardas, no entanto, descontrolaram-se, disparando na multidão. Indignado, o povo reunido na praça em frente partiu para o assalto e dali para o massacre. O tiroteio durou aproximadamente quatro horas. O número de mortos foi incerto. Calculam que somaram 98 populares e apenas um defensor da Bastilha.
Launay teve um fim trágico. Foi decapitado e a sua cabeça espetada na ponta de uma lança desfilou pelas ruas numa celebração macabra. Os presos, soltos, arrastaram-se para fora sob o aplauso comovido da multidão postada nos arredores da fortaleza devassada. Posteriormente a massa incendiou e destruiu a Bastilha, localizada no bairro Santo Antônio, um dos mais populares de Paris. O episódio, verdadeiramente espetacular, teve um efeito eletrizante. Não só na França mas onde a notícia chegou provocou um efeito imediato. Todos perceberam que alguma coisa espetacular havia ocorrido. Mesmo na longínqua Königsberg, na Prússia Oriental, atingida pelo eco de que o povo de Paris assaltara um dos símbolos do rei, fez com que o filósofo Emanuel Kant, exultante com o acontecimento, pela primeira vez na sua vida se atrasasse no seu passeio diário das 18 horas.

A declaração dos direitos 
A Assembléia Nacional Constituinte, enquanto isso, continuava elaborando os artigos constitucionais. Uma pequena comissão de deputados, entre eles o marquês de La Fayette, Dupont, Barnarve, La Meth e Blancon, reunidos na casa de Thomas Jefferson, então embaixador norte-americano em Paris, pensaram em dotar a futura Constituição francesa com um preâmbulo, uma Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que sintetizasse os anseios maiores da Revolução. Pronta a sua redação, na qual adotaram o mesmo formato das Tábuas da Lei, com uma introdução redigida por Mirabeau, aprovaram-na na sessão de 26 de agosto de 1789. Em apenas 17 artigos, facilmente aprendidos, expuseram os direitos básicos da modernidade e o desejo de autonomia da burguesia (que como classe universal, falava em nome do povo inteiro). Com ela, com a declaração dos direitos, a revolução francesa de 1789 irmanou-se com a revolução americana de 1776, selando o início do fim do absolutismo e consolidando as assim chamadas, por R.R. Palmer e Jacques Godechot, "Revoluções Atlânticas". O documento tinha também outras ambições, os 17 artigos que a compunham serviriam como um novo catecismo elaborado pela burguesia que assim se auto-delegava a tarefa de emancipar o mundo do feudalismo e dos privilégios herdados pelo nascimento. 


Abolição dos privilégios 
 

reprodução
Chegara a vez do povo ser carregado
O segundo semestre de 1789 continuou proveitoso: numa memorável sessão noturna realizada em quatro de agosto, assustados pelo grande medo, provocado pelo assalto dos camponeses aos castelos e moradas dos nobres, aboliram-se os privilégios e os direitos feudais arraigados há séculos na sociedade francesa. Até os deputados da nobreza, empolgados pelo momento cívico, votaram a favor pensando em entregar os anéis para salvar os dedos. Privilégios, diga-se, que beiravam o absurdo. Os nobres eram premiados com a isenção de impostos, tribunais especiais (e sentenças brandas, simbólicas), e o direito de prender quem quisessem. Até as dívidas de jogo de alguns deles foram pagas por Luís XVI. As suas regalias pareciam inesgotáveis, entre elas o poder de lançar mão de antiquíssimos impostos feudais, muitos deles em completo desuso, para arrancar ainda mais recursos dos camponeses empobrecidos. Advogados se especializaram apenas em resgatar esses impostos caducos nos velhos registros paroquiais, no que foi chamado de "segunda servidão", ameaçando os camponeses com a polícia caso não os pagassem.
Fim do monopólio católico

A 23 de agosto, os constituintes garantiriam o direito à liberdade religiosa, acabando com a dominação exclusiva do catolicismo e, em 2 de novembro, golpearam a Igreja Católica ao colocar todos os bens eclesiásticos à disposição do país. O decreto da disponibilidade dos bens da Igreja provocou uma onda de invasões de mosteiros e igrejas por toda a França, onde multidões endoidecidas pilhavam o que podiam daqueles interiores até então sagrados. As tropelias foram tantas e tão devastadoras, a quantidade de estátuas e vitrais destruídos tamanha (na Catedral de Notre-Dame até as estátuas bíblicas dos reis de Israel e Judá foram decapitadas), que fizeram com que o deputado padre Gregoire cunhasse uma expressão especial para defini-las: vandalismo!
Na sessão de 24 de agosto, afirmariam a liberdade de imprensa, abolindo-se a censura. Os jornais se multiplicaram. No decorrer de 1789, nasceram mais de 130 periódicos e, até setembro de 1791, eles se aproximaram de 600 títulos.

As três forças
 
Até aquele momento, na acurada observação de Chaussinand-Nogaret, três forças disputavam o poder na França. A Coroa apesar de combalida ainda contava com o apoio das guarnições militares, a fidelidade da alta nobreza, e o respeito do clero, e, bem ou mal, mantinha-se pela simples inércia da tradição que educara todos a ser obedientes ao rei. Mas estava em rápido processo de erosão. Emergente era o poder da Assembléia Nacional, que rapidamente transferiu-se de Versalhes para as Tulherias em Paris. Tinha mais de 700 parlamentares, mas sem nenhum poder de fogo além dos seus decretos legislativos. A seu favor tinha a simpatia e o apoio de boa parte da nação. Pode-se dizer que, nessa fase, os deputados, em seus discursos, apenas faziam eco, afinados com o que se dizia no reino inteiro. E por último, por vezes associado à Assembléia Nacional, outras totalmente incontrolável, o instável poder das ruas, a "hidra da anarquia" como disse o deputado Brissot, com a Comuna, com seus comitês de bairros e suas milícias e patrulhas cidadãs, seus amotinamentos, suas arruaças e violações de toda ordem, sua volúpia cada vez mais acentuada por derramar sangue que se combinava com a desgraça da fome e com uma afrontosa coragem. Ao entrar no ano de 1791, a Coroa, a Assembléia e a rua, a aristocracia, a burguesia, e os sans-culottes, se prepararam para travar a grande batalha pela conquista do coração e da mente de toda a nação. 

reprodução (gravura da época)


http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/rev_francesa.htm

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