"Arqueologia das emoções" para perceber as sociedades antigas

A identificação de Ricardo III trouxe a público uma questão: os achados arqueológicos podem ser uma janela para as vivências emocionais dos tempos remotos? Falámos com uma pioneira desta nova abordagem

Sarah Tarlow, pioneira da "arqueologia das emoções", dá hoje à tarde, na sua Universidade de Leicester, no Reino Unido, uma conferência sobre o tema. Por pura coincidência, a palestra acontece numa altura particularmente oportuna: poucas semanas após a identificação do corpo do rei Ricardo III de Inglaterra por uma equipa da mesma universidade - descoberta que pôs logo uma série de especialistas a falar em "reavaliar" a personalidade do monarca, até aqui visto como o mais malévolo e maquiavélico da história britânica.

Sarah Tarlow não participou na procura de Ricardo III. Mas estuda, desde metade dos anos 1990, como fazer para "desenterrar", com rigor científico, a partir do material arqueológico - ossadas, construções, utensílios e outros objectos - os sentimentos e as emoções dos nossos antepassados.

Há 20 anos, isso não passaria pela cabeça de ninguém - ou quase. Considerava-se simplesmente impossível deduzir dos achados fosse o que fosse sobre as experiências afectivas nas civilizações antigas. Mas, hoje, a ideia começa a vingar.

"Acho importante estudar a arqueologia das emoções porque são elas que dão força e significado a tudo o que fazemos", disse Sarah Tarlow ao PÚBLICO em conversa telefónica. "A arqueologia não consiste apenas em escavar objectos; isso é só o começo. O que importa são as experiências humanas do passado. As emoções podem e devem ser estudadas" neste contexto.

Porém, não se trata de determinar emoções individuais, mas sim de perceber o tipo de sociedade em que esses indivíduos viviam. "Mais interessante do que saber se sentiam raiva é percebermos se viviam numa sociedade onde a raiva era ou não valorizada", frisa Sarah Tarlow. E dá um exemplo concreto: se se encontrar uma peça de calçado numa escavação arqueológica, será totalmente desinteressante daí deduzir que os humanos tinham pés - isso já é sabido, tal como se sabe que sentiam medo, alegria, raiva, desgosto, inveja... O que conta é que a as características do calçado nos informam sobre um modo de vida que nos é, a priori, estranho. Como também não se trata de descobrir "a verdade", salienta, mas de construir uma "narrativa plausível".

Nesse sentido, a arquitectura, em particular, permite determinar o "clima emocional" de uma sociedade: "uma construção com muitas entradas e controlos de acesso sugere uma sociedade hierarquizada, onde existia um clima de desconfiança", salienta a cientista.

E no caso de Ricardo III? "É um belo exemplo", responde-nos. "Sabemos pelo esqueleto que padecia de uma grave escoliose. Portanto, como sofria sem dúvida de dores crónicas, é provável que tivesse mau feitio. E também complexos com o seu corpo, que não era muito masculino: tinha ossos muito pequenos."

Mas o que mais intriga Sarah Tarlow é o que aconteceu ao corpo do rei após a morte, porque "isso fala-nos da raiva de algumas pessoas à sua volta." Então era mesmo assim tão mau? Nem por isso: "Também recebeu um enterro digno, o que significa que nem toda a gente o odiava. O passado é um lugar complicado, onde não devemos procurar respostas simples".

Sarah Tarlow está, aliás, a analisar o tratamento dado aos cadáveres de criminosos executados nos séculos XVIII e XIX. "No Reino Unido, esses cadáveres eram dissecados nas aulas de anatomia ou expostos em público, já em descomposição, em gaiolas penduradas à beira das estradas", explica.

"Era uma maneira de prolongar o castigo, mas não era racional. Não encaixava no pensamento religioso, que só se preocupava com a alma, nem no pensamento científico, que via o corpo como uma máquina. Acho fascinante o quão contraditórias podem ser as pessoas." Algo que, ao que tudo indica, o tempo não alterou.

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