Quando foi lançado, em 1982, o filme "Tron" causou um grande impacto visual. Pela primeira vez, um longa metragem fazia uso extensivo de animações computadorizadas. Além disso, o filme se propunha a humanizar e dar corpo aos programas e games que "viviam", por assim dizer, dentro dos computadores — um artefato que na época parecia ainda bastante "distante" e mítico.
O filme era surpreendente também por vir dos estúdios Disney, e por representar uma ruptura com relação ao tipo de imagem e temática consagradas pela empresa. Nada de princesas encantadas, madrastas que viram bruxa ou patos de voz irritante. A "mágica" aqui não acontecia por intervenção de uma fada madrinha, mas pelo uso da tecnologia.
O programador de games Kevin Flynn (Jeff Bridges) quer provar que teve suas criações roubadas por um colega inescrupuloso, Ed Dillinger (David Warner). Para isso, ele tenta hackear o computador da Encom, empresa em que trabalhavam juntos. No entanto, acaba sendo catapultado para dentro do universo virtual por uma inteligência artificial, o MCP (Master Control Program), criada por Dillinger para proteger o sistema operacional. Nessa realidade paralela, Flynn lutará por sua vida e pela libertação dos programas oprimidos pelo tirânico MCP.
A história contada pelo filme tinha uma sintonia com o espírito de seu tempo, mais do que propriamente "originalidade", ao propor esse mergulho nas entranhas de um computador. Nos anos 60, "Viagem Fantástica" de Richard Fleischer já havia lançado as bases para isso com sua jornada pelo interior do corpo humano. A criação de um ambiente tecnológico mítico e distópico no cinema também não era inédito e pode ter suas origens traçadas desde "Metrópolis", de Fritz Lang. Mesmo o fascínio pelo universo dos jogos eletrônicos no filme guarda algum parentesco com o fliperama de "Tommy". Mas, nos anos 80, "Tron" atualizava todos esses temas, acrescentando-lhes ritmo e aparência de videogame computadorizado.
Dos 96 minutos do filme, apenas cerca de 20 são de gráficos digitais —o que, para a época, já era um uso extensivo. A maior parte do filme se fia de técnicas de animação tradicionais, mas a serviço de um visual "tecnológico". Os icônicos frisos luminosos que aparecem nos cenários, roupas e frisbees, por exemplo, foram criados em animação manual, quadro a quadro.
Os animadores tiveram de lidar com equipamentos que, comparados aos disponíveis hoje, eram limitadíssimos —com capacidade de armazenar cerca de 330 Mega, ou menos da metade de um CD gravável. Limitações tecnológicas impediram, por exemplo, que o filme tivesse atores e animações computadorizadas juntos. Ainda assim, essas limitações não impediram que o filme criasse uma linguagem visual única que marcou época e que, durante muito tempo, serviu de referência para vinhetas de TV, aberturas de programas e cenários futuristas de telejornais.
Uma equipe de primeira linha foi reunida para dar vida ao conceito do filme. As antológicas motocicletas (chamadas "light cycles") e as fontes do logotipo foram desenvolvidas pelo designer americano Syd Mead, que anos antes havia trabalhado na equipe de direção de arte de "Blade Runner". A concepção dos cenários e figurinos ficou a cargo do celebrado quadrinista francês Jean Giraud (Moebius), criador da revista "Métal Hurlant" (também conhecida como "Heavy Metal", em sua tradução para o inglês). Para a trilha sonora foi convocada a compositora Wendy Carlos, famosa por suas pioneiras (e ousadas) reintrepretações eletrônicas de Bach e Beethoven, e também pelas trilhas de "O Iluminado" e "Laranja Mecânica" de Stanley Kubrik.
Comparado ao filme que lhe deu origem, "Tron - o Legado", que estreia nesta sexta (17), parece tímido. Sim, as animações geradas em computador são mais realistas, os efeitos mais grandiosos e os ambientes mais variados. Mas em termos de "visual", tudo parece apenas uma versão mais acabada e polida do primeiro filme e de outros filmes do gênero. Aqui e ali, faz lembrar a série "Guerra nas Estrelas", mais adiante evoca "Matrix", só para citar alguns.
As motos de luz podem até parecer mais velozes e ameaçadoras, mas não se engane. Os próprios personagens do filme duvidam disso. Num determinado momento, aparece uma moto "antiga" e um deles comenta: "Dizem que essas ainda são as mais velozes". Além da falta de ambição e ousadia plástica do filme, chama atenção também a obviedade do destino traçado para os personagens. Passados quase trinta anos, todos estão mais ou menos na mesma posição em que foram deixados pelo "Tron" de 1982.
O protagonista agora é Sam (interpretado pelo insípido Garrett Hedlund), filho de Flynn. E se o pai era um herói tipo outsider, o herdeiro está mais para um playboy bobo, rebelde sem causa. A ação de verdade demora para pegar. Tanto pai como filho são personagens muito hesitantes, que demoram a tomar as rédeas de seu destino. E muito do filme é gasto tentando localizar o espectador na história e no contexto em que vive o novo protagonista.
Foi adicionada à trama um componente "dignificante": o que justifica a nova aventura é a tentativa heróica do filho resgatar o pai. E eis que Jeff Bridges reaparece aqui ao mesmo tempo como o pai de Sam e como o vilão Clu. Para o papel do vilão, aliás, o ator foi digitalmente rejuvenescido 20 anos, com uma técnica de animação e mapeamento de feições similar à utilizada em filmes como "O Curioso Casod de Benjamin Button" e "Beowulf".
Flynn ressurge como um homem envelhecido e cansado, metaforicamente desiludido dos rumos que a tecnologia tomou. Um fim melancólico para o personagem tão cheio de vida e transgressor que aparecia no primeiro "Tron". O filho e a bela Quorra o convencerão a sair de seu estado catatônico e lutar contra Clu.
Quorra, aliás, interpretada por Olivia Wilde (a "Treze" do seriado "House"), é uma das poucas boas coisas do filme. E há também a participação da dupla francesa Daft Punk. Ambas conferem uma graça ao filme. A segunda, além de colaborar com a trilha, faz uma ponta, como DJs de um inferninho virtual. E, há de se ressaltar que eles são o único elemento do filme que realmente tem alguma ligação com o verdadeiro legado de inovação estética e tecnológica deixado por "Tron".
"Tron - o Legado" é incapaz de fazer uma afirmação própria, ele apenas confirma o que já se sabia: "Tron" foi realmente um filme genial e inovador, que lançou um estilo e apontou um novo caminho para o cinema de animação.
Ao que parece, os produtores de "Tron - O Legado" se contentaram em deslocar o foco de atenção do filme para o lançamento em 3D. E só o tempo dirá se o ponto em que essa tecnologia se encontra hoje é comparável ao estágio rudimentar em que estavam os gráficos computadorizados no início dos anos 80. O fato é que pelo menos para aquelas animações não era preciso usar óculos toscos.
Cinema UOL
0 Comentários