Tron O Legado e o Futuro

Sinto muito Omelete, mas essa sim é uma bela crítica. Contextualizada, sincera, profunda e sensível. Parabéns ao autor Fábio M. Barreto.
Deus descansou ao sétimo dia, então Flynn assumiu o comando e não parou por 200 anos. Flynn Lives! Tron: O Legado chegou com deslumbre visual e deslizes de roteiro, mas dá conta do recado pela empolgação e trilha sonora.
por Fábio M. Barreto, de Los Angeles
Flynn está vivo! Desapareceu, mas vive como um criador ausente no Grid, mundo virtual resultante de sua primeira aventura, em Tron – Uma Odisséia Eletrônica. Seu legado é o tema da nova visita a esse universo criado por Steven Lisberger, a partir de uma arte conceitual nos primeiros estudos de efeitos gerados por computador, no início dos anos 80. Inicialmente, foi regido pelo espírito aventureiro vanguardista; hoje responde a uma deidade maior, o marketing, ferramenta capaz de transformar um universo cult adorado por gerações de programadores e nerds num fenômeno cultural com influências na moda, tecnologia e, claro, cinema. Mas Tron: O Legado se apóia na mesma estrutura de roteiro do original, especialmente nos deslizes, ao estipular novos mitos e salvar um mundo conceitualmente perfeito, mas efetivamente tão falho e imperfeito quanto a índole de seu mentor.
O tempo passou, mas os conceitos de Lisberger continuam os mesmos. Uma situação negativa precisa ser reparada, um herói se faz necessário e o prêmio é a maior compreensão, entregue sob forma de liberdade do mundo computadorizado. Portanto, Tron: O Legado continua o mesmo, num efeito similar ao obtido por George Lucas ao revitalizar a história de Guerra nas Estrelas em O Retorno de Jedi. Variações do mesmo tema com nova roupagem e mais urgência, afinal, o Master Control original era tirano do sistema fechado de uma empresa, a ameaça atual pode subverter o mundo real.
Mas a passagem do tempo é a grande chave, pois ela permitiu amadurecimento a Flynn – que testemunha, impassível, o resultado de sua própria busca por perfeição, assim como deu ao mundo de Tron, o chamado Grid, tempo suficiente – cerca de 200 anos, nas medidas humanas – para se desenvolver e gerar sua própria vida. Diferente das máquinas da Matrix, a vida oriunda do Grid é pura e positiva e, por definição, deveria ser boa. E por um tempo tudo foi bom, até a pureza ameaçar a perfeição e o caos se instaurar. Tudo isso centrado na figura obstinada de Clu, avatar virtual de Flynn, uma cópia cuja função é criar o mundo perfeito com a mesma obstinação de seu criador.
Curiosamente, esse personagem é uma espécie de mistura entre os lados negros de Steve Jobs e Bill Gates, figuras inevitavelmente comparáveis ao Flynn pós-Tron. Todos buscando uma equação perfeita que nunca é totalmente satisfeita, num eterno vir-a-ser. É a tragédia humana transposta até mesmo para as barreiras virtuais. A partir do momento que o Grid foi capaz de gerar sua própria vida – representada pela raça chamada de “ISOs”, algoritmos isomórficos – essa condição manifesta se faz presente, pois elementos não frutos da engenharia humana ou virtual são passíveis tanto de falha gigantesca quanto de milagres insuperáveis. Esse é o dilema imperceptível a Clu, ponderado ao extremo por Flynn e apenas uma pequena equação na acelerada passagem de Sam pelo Grid. A vida, seja lá qual sua forma ou natureza, tem começo caótico e imprevisível por definição. Controlá-la nesse estágio primário pode trazer repercussões catastróficas.
Em termos estruturais, essa busca por balanço é o grande tema de Tron: O Legado. Três forças se digladiam numa disputa que resultará na nova ordem para o Grid. Flynn acreditou ter libertado aquela sociedade, mas apenas substituiu a mão de ferro do Master Control pelo seu próprio sonho perfeccionista. Sam é motivado pela saudade do pai, que desapareceu misteriosamente anos atrás. O conflito é necessário, inevitável e, embora previsível, serve a um propósito maior. É o ciclo se completando, doa a quem doer. É um dilema mais complexo que o proposto pelos Wachowski ao questionar origens e razões, em vez de oferecer um crescendo armamentístico e apocalíptico à conclusão.
Visualmente não há dúvidas da colaboração ímpar de Tron: O Legado, mas é em sua maior bandeira que reside seu ponto de quebra. Jeff Bridges foi digitalizado e atuou duas vezes, em algumas ocasiões contracenou com si mesmo graças a novas técnicas de motion capture, mas não impressiona tanto quanto deveria. A inevitável comparação com os Na’vi de Avatar e Gollum de O Senhor dos Anéis vai ser inevitável e, em primeira impressão, negativa. Clu pode causar desconforto por suas claras imperfeições. Joseph Kosinski defende que em alguns momentos, a feição humana foi captada e refletida, mas nunca foi seu objetivo encontrar a perfeição e, já respondendo às comparações, alega que James Cameron foi mais efetivo por criar figuras e feições alienígenas, portanto, de mais fácil aceitação. De fato, há lampejos de identificação humana em Clu, mas, claramente, trata-se de um personagem gerado por computador, que lembra Jeff Bridges. Pela estratégia de Kosinski e Lisberger, o filme vai ser inovador justamente nessas poucas ocasiões de sucesso e determinará as novas bases para a atuação com fins digitais. É uma aposta de risco, mas com sustentação tecnológica. Entretanto, esse tipo de argumentação não atinge o público final, que vai ser responsável pela manutenção da gigantesca campanha de marketing da Walt Disney Pictures, que transformou essa seqüência de um filme cult no dos filmes mais divulgados do ano. Um detalhe importante: a Disney optou por não relançar o filme original para aproveitar o embalo do marketing e a decisão foi certa, afinal, o ritmo (ou falta) do primeiro longa poderia afastar muita gente dos cinemas, o que seria uma pena.
Felizmente, sem excessos em termos de imagem em si. Em conversa com o produtor Sean Bailey, na Comic-Con 2008, falamos sobre a importância de se manter o filme imaculado tanto para público quanto para imprensa. Exposição exagerada tem saído pela culatra recentemente, vide Procurados e até mesmo Watchmen – O Filme, que foram tão picotados e explorados pelo marketing que, quando assistidos na íntegra, perdem seu potencial para surpresa por não ser nada novo, afinal, não passa da amarração de algo já visto de modo desmembrado. Tron: O Legado segui um caminho positivo e a prévia de 20 minutos que correu o mundo em novembro serviu como tacada estratégica para começar a espalhar opiniões. Funcionou na maioria das vezes, mas sofreu com a falta de contexto e instigou as mentes ávidas por “erros” dos “críticos da internet” a questionar a essência da obra sem mesmo vê-la.
Filmes são feitos para serem assistidos em sua completude. Um dia o marketing aprende, mas já demonstraram estar no caminho da contenção. E isso ajuda a esse filme, cujo roteiro é simples e óbvio, com algumas cenas inspiradas diretamente no seu original, e direção meticulosa adequada a um grande supervisor de projetos que um diretor de cinema. É a realidade desse megaprojeto entregue a um talentoso novato, Joseph Kosinski, que deu vazão a sua visão e concluiu uma tarefa impressionante, deixando o visual trabalhar e pecando na hora de exigir mais de Garret Hedlund, ainda limitado, especialmente para uma eventual, e provável, continuação. Para sorte de Kosinski, Hedlund está no Canadá filmando On the Road com Walter Salles Jr., que provavelmente vai lapidar bastante o garoto. Bridges sobra na tela e fez o que bem entendeu. Conhece seus personagens. Michael Sheen brilha, subverte, brinca, inspira e assusta como Castor, uma mistura do Coelho de Alice, que, curiosamente, o ator dublou no filme de Tim Burton, com o Merovingian da Matrix. Olivia Wilde acaba sendo o grande respiro aliviado com sua Joana D’Arc virtual inocente pelas circunstâncias e ávida por conhecimento.
Um capítulo à parte é a participação da dupla Daft Punk, que garantiu a vida e a intensidade do filme com a trilha sonora. O ritmo eletrônico dos músicos nasceu de Tron e agora se completa, com batidas tão – ou mais – intensas que o roteiro e tamanha identificação que fica difícil imaginar esse longa sem a presença de Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter, que fizeram por merecer suas presenças em cena. Uma união perfeita que beneficia o filme de maneira arrebatadora.
Uma coisa é certa! Tron: O Legado vai empolgar com seus gladiadores iluminados – DiscWars! DiscWars! – e realizará o objetivo de seu comandante: deixará o espectador intrigado com a pergunta-chave. Que mudanças uma ação impulsiva pode causar a um mundo? Seja ele real ou virtual? Que cada um encontre sua própria resposta.
End of line.
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