Em vida, Leonardo da Vinci foi visto como a personificação do homem da Renascença, por seus múltiplos talentos. Sua lista de predicados é longa. Apenas como exemplo, ele pode ser citado com destaque em áreas tão diferentes como a engenharia e a pintura, ou a anatomia e a matemática. Foi ainda botanista e escultor. Arquiteto e cartógrafo. Suas qualidades são reconhecidas até o presente, e o transformaram em uma referência em diversos campos de atuação. Hoje, Da Vinci não é apenas uma lembrança: ele se transformou em uma marca, que funciona como um verniz, que daria status cultural a quem tivesse acesso a ele. Ilustra livros, filmes, desenhos e toda uma indústria de produtos relacionados.
Não é de se espantar, portanto, que a maior exposição dedicada ao pintor Leonardo se transformasse em um sucesso de público. É o que aconteceu, está acontecendo e deve acontecer até 5 de fevereiro de 2012, na National Gallery, que fica na Trafalgar Square, em um dos pontos centrais de Londres. Os ingressos adiantados estão esgotados até janeiro e, no primeiro dia de exibição, na quarta-feira (9), os sem-entrada chegaram três horas antes dos portões se abrirem para ter acesso a “Leonardo Da Vinci: Pintor na Corte de Milão".
“Eu aprendi com meu pai a gostar de Leonardo”, disse o primeiro da fila, o mexicano Eduardo Tuncott, que mora em Vancouver, no Canadá francófilo. “É uma oportunidade única para ver certas obras, como ‘Dama com um arminho’, que pertence a um museu da Cracóvia [Polônia] e não fica em exibição”, comentou, fazendo coro com o curador da exposição, Luke Syson, que disse ser esta uma chance única de ver essas obras todas em conjunto.
Arte e ciência interligadas
A exibição, como seu título sugere, foca no período que Da Vinci, a convite do duque de Milão, Ludovico Sforza, saiu de Florença para trabalhar na corte milanesa. Chegando lá, Ludovico, conhecido como “Il Moro”, o mouro, por conta de sua cabeleira negra e tez escura, percebeu, a partir de um dos quadros de Da Vinci, que o fiorentino de 30 anos deveria trabalhar na pintura. E assim foi. Sforza, que tinha usurpado o trono milanês de um sobrinho, pôde realizar o sonho de construir uma academia, inspirado na de Platão, e usar nela a marca “Leonardo da Vinci” para assiná-la. Foi o primeiro que percebeu o potencial de divulgação desse nome.
A primeira sala da exposição sugere como ela quer ser interpretada. A obra que recepciona os fãs de Leonardo é um dos inúmeros desenhos e esboços (a maioria, curiosamente, pertecente à “sua majestade, a rainha” da Inglaterra) em que Da Vinci conecta os globos oculares a três cavidades interligadas na cabeça de uma pessoa. Essas regiões seriam responsáveis pela imaginação, pelo intelecto e pela alma, reforçando a importância dada pelo artista ao sentido da visão. Em seguida, é possível ver e conhecer um pouco a história de Ludovico, e, em seguida, descobrir qual foi a obra que fez seu mecenas mudar de ideia: “O músico”.
Falar das inovações técnicas implementadas por Da Vinci no campo da pintura serviria apenas para aqueles colecionadores de dados, que gostam de enumerar as razões pelos quais uma obra é – ou não deveria ser – de arte, como se fosse uma questão matemática. Além disso, qual é o impacto hoje em dia em dizer que Leonardo teve a ousadia de retratar o cantor (provavelmente Atalante Migliorotti – 1482-1535) em um perfil de três quartos, quando a tradição era colocar os personagens completamente de lado? Porém, ao comparar outros retratos da mesma época, que figuram no mesmo ambiente, podemos ver como Da Vinci tinha a intenção de tornar aquele personagem próximo de quem o estava encarando. E nos detalhes podemos ver que, para o renascentista, a arte e a ciência estavam interligadas: é possível reparar que as pupilas dos olhos do personagem estão dilatadas de maneira diferente uma da outra, demonstrando que a luz que incidia sobre o personagem mudava.
Provável autoretrato de Da Vinci. Wikimedia Commons
Na segunda sala, se tem contato com a primeira obra do panteão das mais conhecidas: “Dama com um arminho”. Antes, passamos por um aquecimento e uma preparação: podemos ver outros retratos do período, acompanhar os estudos de Da Vinci, e perceber a proposta inovadora que ele queria pôr em prática. O objeto principal merecia sua consideração: era a menina Cecilia Gallerani, de 16 anos, amante do seu mecenas, Ludovico Sforza. Leonardo escolheu colocá-la segurando esse pequeno carnívoro, porque ele simboliza pureza e moderação. E novamente, ao compará-la com outras obras, vemos como as mulheres sempre apareciam nos quadros aparentando riqueza e opulência, cheias de joias, mas eram frias e distantes. Leonardo, que acreditava que a beleza era símbolo de virtude interior, tenta passar calor, confiança, intimidade. Sensualidade, em uma só palavra. Cecilia estaria olhando para Ludovico, ao lado da tela?
Esse jogo de segredos que não podem ser inteiramente revelados são encontrados tanto nos diversos desenhos quanto nas obras principais. Em certos esboços, podemos ver perfis aparentemente sem importância na parte de baixo do papel, enquanto no alto há estudos para o que seria usado na “Virgem das rochas”, por exemplo. Por trás da segunda versão da obra, inclusive, os restauradores descobriram os traços para uma configuração completamente nova da obra – que não foi levada a cabo.
'Virgem das rochas' unidas
Esse é, inclusive, um dos pontos altos da mostra: a sala com as duas “Virgem das rochas” pintadas por Da Vinci. De acordo com curador da exposição, Luke Syson, talvez ninguém, nem mesmo o italiano, tenha visto as duas, assim, uma de frente para a outra. “A do Louvre é a minha pintura favorita de Leonardo”, contou o primeiro da fila, Tuncott, se referindo à obra produzida antes. A outra, pertencente à própria National Gallery, foi o motivo inicial de toda a mostra.
“Nós primeiro começamos a falar sobre essa exibição cinco anos atrás, e ela realmente aconteceu porque nós começamos a pensar sobre o que poderíamos fazer com nosso grande quadro da ‘Virgem das rochas’, que nós estávamos então pensando em restaurar. Que tipo de exibição iria se encaixar melhor, como poderíamos celebrar esse extraordinário projeto”, contouSyson.
Com as duas no mesmo salão, é possível brincar de uma espécie de jogo das diferenças – e é comum que os espectadores fiquem olhando de um lado para o outro, e retornando. Ambas mostram são João Batista bebê, ajoelhado numa posição mais privilegiada que o menino Jesus, que, por sua vez o abençoa de volta. Maria está entre as duas crianças e atrás de Jesus está um anjo. A pintura que pertence hoje ao Louvre, e está em Londres protegida por uma caixa de vidro espesso, tem mais mistérios: o anjo olha para o espectador, diretamente, e aponta para são João. Os organizadores sugerem respostas: Maria protege o Batista, que era adorado pela fraternidade da Imaculada Conceição, que encomendara a obra. São João reza para Jesus que, por sua vez, o recompensa com uma benção. O anjo olha para o espectador e aponta para Batista para dizer que ele é o apoio da humanidade.
A segunda versão, iniciada 1491/2, oito anos após a conclusão da primeira, mas só terminada entre 1506/8, mostra, segundo os especialistas, uma transformação na forma de pintar de Leonardo. No primeiro exemplar, o artista queria retratar mais fielmente a natureza. No segundo, começado provavelmente após uma disputa sobre a venda do primeiro, ele queria mostrar como seria a visão divina do mundo.
Essa tentativa de se diferenciar do homem comum também aparece na obra “Salvator Mundi”, que até pouco tempo acreditava-se não ser de Leonardo. Nela, um Cristo segura um globo de cristal, que, de acordo com o museu, era até então impossível de ser feito na Europa. Ou no desenho inacabado conhecido hoje como “The Burlington House cartoon”, em que Leonardo colocou Maria sentada no colo de sua mãe, santa Ana, com o menino Jesus e são João, ainda criança, ao lado.
“O fato da mão de santa Ana estar incompleta é o modo de Leonardo dizer que o desenho é a hora em que a criação aconteceu, e que toda a energia da invenção vem de Deus”, argumenta Syson.
Tinta a óleo e ovo
Apesar da exposição não ter nem a “Mona Lisa”, atualmente no Louvre, nem o original da “Última ceia”, que foi pintada diretamente na parede do convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, há uma sala especialmente para essa última obra, considerada a principal do período que Leonardo esteve trabalhando para o duque de Milão. Há, inclusive, uma cópia gigantesca de um dos pupilos de Leonardo, Giovanni Pietro Rizzoli, conhecido como Giampetrino, em que é possível ver em detalhes a pintura – mas que perde bastante em graça, se comparada à original, mesmo desgastada. Além disso, há diversos estudos para conseguir chegar às únicas expressões de cada um dos apóstolos.
Na “Última ceia”, o artista usou uma mistura de tinta a óleo e ovo para poder trabalhar no seu próprio tempo, sem que o afresco endurescesse. Esse é o motivo apontado pela dificuldade na conservação: 20 anos após o seu término, a obra já estava avariada. Como se sabe, a obra gigantesca mostra a reação dos apóstolos após Jesus dizer que um deles iria traí-lo. Leonardo usou diversas expressões para transmitir os humores de cada um dos 12 homens sentados na mesa com ele.
“Leonardo pensava que deveria pintar duas coisas, o homem e o trabalho da mente humana. A primeira era fácil. A segunda, difícil. Deve-se representar os gestos e movimentos do corpo. E a ‘Última ceia’ era a melhor cena para se fazer isso”, opina Syson, sobre a obra que também carrega os seus segredos, como os apóstolos terem sido pintados em grupos de três indivíduos, um número com significação divina.
“Este foi o período mais estável de seu trabalho”, conta Syson, se referindo à época em que Leonardo esteve sob o mecenato de Sforza, “com salário e um estúdio, ele poderia ter tempo para criar, pensar, para inventar. E para pintar certas pinturas que nunca tinham sido pintadas.”
* Ronaldo Pelli é jornalista radicado em Londres e escreve no blog http://contonocanto.blogspot.com/
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