Saramandaia

Essa eu não esperava encontrar tão cedo.
A abertura da novela Saramandaia. Lembram?


SARAMANDAIA

"O realismo necessário para construir um retrato da realidade brasileira não pode se abster do fantástico".
Dias Gomes.

Saramandaia foi um marco na tv brasileira. Pra quem não é desse tempo a novela se passava numa cidade que só tinha gente esquisita — lobisomens, mortos-vivos, um cara que botava o coração pela boca, um coronel que cuspia formigas, mulheres gordas que explodiam e homens que voavam.
O teatro do Absurdo em sua glória. A novela abusava de metáforas e alegorias numa época em que a livre expressão era, ela sim, fantasia.
É... o regime militar era fogo.

Lembro que tinha medo de assistir...rs
Era muito pequena. Mas gostava da novela. Como não gostar? Era muito divertida. Pena que passava tarde da noite (para os meus padrões, é claro) e creio que tenha assistido poucos episódios. O último assisti com certeza. Desse eu lembro. "Pavão mistÉrioooso, pássaro formoso..." tocando enquanto João Gibão (Juca de Oliveira) executava seu fantástico vôo e a insólita explosão de Dona Redonda (Wilza Carla)...rs
Tudo absolutamente doido, nonsense e genial.

Esse é parte de um artigo muito bom sobre o Realismo Fantástico em Saramandaia chamado "METAMORFOSES DO REALISMO MÁGICO EM DIAS GOMES".
Para os interessados vale uma boa leitura. O Texto original se encontra aqui.

Dias Gomes é um autor que reconstruiu as imagens do cotidiano brasileiro por angulações imprevistas e inquietantes. Sem abrir mão de tocar nas feridas nacionais e ao mesmo tempo, desvelando as visões de mundo e as experiências coletivas de modo afirmativo, Gomes fabricou janelas para uma contemplação do Brasil, muitas vezes utilizando-se dos recursos estéticos do realismo fantástico e isto aparece na epifania das imagens de diversas telenovelas.

“Saramandaia” é uma cidadela onde vivem 1000 habitantes e sua riqueza é produzida por uma usina de cana-de-açúcar chamada “Bole Bole”. Quase toda a população trabalha na cultura de cana-de-açúcar ou no alambique de cachaça. Um plebiscito para mudar o nome da cidade "Bole Bole" em "Saramandaia" vai dividir os eleitores: de um lado, estão os tradicionalistas, liderados pelo Coronel Chico Rosado; do outro lado, aqueles que querem as mudanças, liderados pelo Coronel Tenório Tavares [4].

Esta história manterá como fio condutor o realismo fantástico, utilizando-se de procedimentos estéticos que também estão presentes na estética do Teatro do Absurdo e dos elementos da cultura popular universal.

Homens viram pássaros, poetas se transformam em lobisomens, mulheres engordam até explodir, coronéis espirram formigas, homens botam o coração pela boca e virgens incendeiam o leito com o “fogo sexualizado”: tudo isso é parte do repertório das metamorfoses da telenovela "Saramandaia". O resgate do "realismo fantástico" ou "realismo mágico" traduz um estilo de ficção que fez a sua aparição, inovando a linguagem da televisão nos anos 70. Num mundo às avessas, num regime político fechado, a saída parecia ser estimular a imaginação pelo exagero.

No delirante universo do realismo fantástico, quase tudo é metáfora e alegoria. Todavia, parece-nos que a recorrência ao "teatro do absurdo" é mais pertinente para interpretar o sentido da telenovela "Saramandaia". Assim, podemos encontrar afinidades de estilo entre a obra de Dias Gomes e as peças dos autores do "teatro do absurdo", tais como Jarry, Pirandello, Kafka, Beckett e Ionesco, entre outros que, na dramaturgia e na literatura universal, experimentaram focalizar os fenômenos extremos pelo viés da provocação, da derrisão e do riso. É uma experiência em que o público chega ao delírio, ao êxtase, entrando num transe dionisíaco pela carnavalização absoluta [5]. O quadro dos personagens do realismo fantástico, como no “Teatro do Absurdo” aproxima as fronteiras entre o mundo real e o mundo fictício, a razão onírica e a imaginação criativa. Dias Gomes é o mais dionisíaco dos autores brasileiros porque sempre soube apreender os modos de ser dos personagens da vida real, captando um tipo de sensibilidade que surpreende pelo vigor, pela persistência, pela maneira afirmativa como rearranja os seus meios de sobrevivência num ambiente minado pelas adversidades.

A telenovela “Saramandaia” ritualizou, no Brasil dos “anos tristes”, a loucura necessária; funcionou como uma espécie de pulmão que permitiu os indivíduos respirarem numa atmosfera sufocada por um regime político autoritário e, foi igualmente, uma das expressões originais de descontração, apesar de todas as interdições da época. Um olhar atento às relações entre ficção e política brasileira encontra na linguagem de Dias Gomes, uma leitura derrisória da "lógica das dominações". Na cartografia dos poderes que regem os ofícios e lazeres, o tempo do trabalho e o tempo do ócio, pelo viés da telenovela “Saramandaia”, compreendemos o modo como os poderes se constituem historicamente, também num nível micrológico. A série mostra como além dos poderes políticos e das classes sociais, da vontade de potência e da representação arbitrária das normas coletivas existe toda uma vasta rede de capilaridades que por um lado, confirmam as experiências de contra-poder e revolta, que desmontam a rigidez das hierarquias, dos discursos verticais de dominação; por outro lado, na simulação cotidiana de “Saramandaia”, verificamos também a efervescência dos micropoderes que dinamizam experiências enriquecedoras no plano das culturas populares. Em oposição às formas normativas, à legiferância dos códigos de linguagem e comportamento, à dureza do mundo regido pelos sistemas econômico, político e religioso, os indivíduos no curso de suas práticas cotidianas reconstroem o sentido da vida, a partir dos modos específicos como interpretam e interagem no mundo.

A investigação inspirada numa antropologia atenta à “imaginação simbólica” pode compreender o universo ficcional de "Saramandaia" num contexto de significação que percorre campos mais vastos e não se reduz a uma crítica da experiência política; ou seja, existe uma perspectiva de crítica do poder na obra de Dias Gomes, mas esta não é movida -a priori- pelo espírito de negação. Estrategicamente, Gomes se instala no interior dos espaços de decisão política, subvertendo as imagens e valores, implodindo o sistema por dentro e virando do avesso as regras do jogo.

As metamorfoses presentes na ficção televisiva revelam a incidência das imagens dionisíacas e suas relações com a idéia da vida indestrutível [6]. A transformação dos homens em outros seres representa, no imaginário universal da humanidade, as imagens permanentes da vida após a morte, numa palavra, a vontade de longevidade e imortalidade que mantém correspondência com o mito do “eterno retorno”, que persiste na construção imaginária das diferentes civilizações. Deste modo, a narrativa mitopoética não se reduz a uma mera explicação pelo viés da História, pois se instala no imaginário social a partir de informações que advém de tempos trans-históricos, primitivos, remotos e extemporâneos. Os desejos e as representações que possibilitam a formalização de uma ficção seriada como “Saramandaia”, tem a idade do percurso da humanidade desde a aurora dos tempos. Encontramos os seus ingredientes, por exemplo, na fábula milenar de “As Mil e Uma Noites”, assim como na comédia de Bocaccio, em Dom Quixote, de Cervantes ou mais recentemente, no cinema de Fellini (Desde “Amarcord” até “La Nave Va” ou “A Cidade das Mulheres”).

Com "Saramandaia" o público reencontra o riso que faz parte de uma cultura que experimenta o sentido do trágico. A sociedade brasileira se sustenta também por meio dos humores que estimulam os atores sociais a gozarem a vida apesar de tudo. Neste sentido, a cultura brasileira distingue-se frontalmente, da cultura européia, caracterizada por uma experiência cotidiana que se define, aprioristicamente, enquanto racionalista; por outro lado, a cultura brasileira diferencia-se também da cultura norte-americana, que se marca por um estilo de vida de cunho mais pragmático. Assim, estas diferenciações mostram na concretude da ficção das telenovelas, algo que o Brasil leva muito sério. O realismo mágico de "Saramandaia" reafirma o espírito dionisíaco que caracteriza a cultura brasileira: a desdramatização da vida, a teatralização do cotidiano, avesso ao melodrama, sob a forma do riso e da carnavalização. A sensibilidade -simultaneamente- dionisíaca e barroca do Brasil coloca em relevo a exuberância e o exagero. Num certo sentido, a ficção brasileira é similar à descrição do universo imaginário de François Rabelais [7], em que o grotesco, o mórbido e o trágico são ingredientes do riso. "Saramandaia" é um vetor de produção e disseminação de sentido e de linguagens lúdicas, excêntricas, carnavalescas, dionisíacas.

Encontramos as imagens alegóricas com os requintes do realismo fantástico em outras realizações da ficção seriada brasileira, como comprovam, em registros diferentes, as telenovelas “Pedra sobre Pedra” (1992), “O Fim do Mundo” (1998), “A Indomada” (1999), a minissérie “O Auto da Compadecida” (2000) e “Porto dos Milagres”, (2001).

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