Vozes saudosas… A dublagem original de Jornada nas Estrelas105

Salvador Nogueira e Fernando Penteriche, descrevem como foi a escolha dos dubladores de Jornada nas Estrelas no Brasil.


Comemorar os 35 anos de Jornada nas Estrelas seria
impossĂ­vel se nĂŁo o fosse com uma grande dose de nostalgia. E quando os
fãs mais antigos da série resolvem relembrar os velhos tempos, as vozes
que eles ouvem ecoar em suas mentes sĂŁo diferentes das que as novas
gerações estão acostumadas.


Tudo começou em 1967, quando Emerson Camargo, então funcionário da
empresa de dublagem AIC, de SĂŁo Paulo, recebeu esta que seria sua
última, mas seguramente não menos importante, ocupação na companhia:
traduzir, escolher o elenco e dirigir a dublagem da primeira temporada
de uma nova série que seria exibida pela TV Excelsior. Sim, era Jornada nas Estrelas a caminho do Brasil.



Camargo já não era novato na área. Além de diversos trabalhos de
menor expressão como dublador, ele já tinha em seu currículo naquela
Ă©poca um seriado de (quase) ficção cientĂ­fica, o cultuado “National
Kid”, onde ele era ninguĂ©m menos que o prĂłprio. Mas nada que ele
tivesse feito antes o havia preparado para a tarefa Ă  frente
–reproduzir em outra lĂ­ngua a complicada terminologia utilizada em Jornada.


Não que isso fosse uma falha em suas qualificações. Muito ao
contrário, aquela não era uma época para traduções especializadas, como
temos hoje. Naquele momento, nĂŁo havia nem especialistas! Camargo entĂŁo
tratou de ser o primeiro.


Sua tradução, feita de forma até descompromissada, tendo em vista a
impossibilidade de checar e tomar por base referĂŞncias anteriores,
acertou em cheio em muitos momentos, consagrando termos que hoje sĂŁo
indispensáveis a qualquer fã do seriado. O que seria de nós hoje sem a
“dobra espacial”? E o que fazer se nĂŁo há aquele velho mĂ©dico do campo,
o “Magro”, para tratar nossa tripulação favorita?


Termos como esses e alguns outros foram gols marcados de primeira
por Camargo. Entretanto, como não poderia deixar de ser, também não
faltaram os gols contra. Ou alguém aí não está sabendo que nos anos 60
a nave Romulana com camuflagem era uma “nave RĂ´mula com capa de
disfarce”?


EpisĂłdios traduzidos, acertos e erros definidos, chega o momento de
escolher o elenco. E adivinhem quem Camargo escolheu para ser a voz
brasileira de James T. Kirk? À la William Shatner, o dublador não
poderia escolher ninguém senão a si mesmo para o papel.


Além dele, Rebelo Netto, Neville Jorge, Carlos Campanelli, Helena
Samara e Eleu Salvador integraram o elenco, interpretando,
respectivamente, Spock, McCoy, Scotty, Uhura e Sulu. Juntos, eles
dublaram o primeiro ano.


Entre esses episĂłdios estava “Space Seed”, onde o
cativante vilĂŁo Khan Noonien Singh mostrava todo o seu carisma. Mas
ninguém poderia prever que o dublador desse personagem, Astrogildo
Filho, estava vindo para ficar. Após o primeiro ano da série, Camargo
deixou a AIC, e com ela seu papel em Jornada. James Kirk estava sem
voz. E seu substituto foi… DĂŞnis Carvalho.


Isso mesmo, o diretor e ator da Rede Globo começou a carreira na
dublagem, e um de seus papéis mais marcantes foi como o bom e velho
capitĂŁo da nave estelar Enterprise. Carvalho, de todos os dubladores
que já passaram por Kirk, foi o que melhor conseguiu reproduzir o tom
de voz de William Shatner. E, curiosamente, foi o que menos episĂłdios
dublou. Antes de terminar a segunda temporada, ele iria passar a bola
para, agora sim, Astrogildo Filho.


Foi Astrogildo quem realmente ficou marcado com a voz do personagem.
Kirk não era mais um qualquer, ele agora tinha uma impostação digna de
um locutor de rádio. E dos bons. Contraposto ao estilo suave de
Camargo, ou mesmo Ă  firmeza de Carvalho, Astrogildo elevava a voz do
personagem a um novo patamar. Foi ele quem concluiu a dublagem da
série, fazendo episódios do segundo e do terceiro ano.


Os outros personagens também teriam vozes trocadas ao longo das três
temporadas. Spock trocou um Netto por outro: saiu Rebelo e entrou
Garcia. McCoy também teve episódios com a voz de João Angelo. E Chekov,
que chegou à turma no segundo ano, foi dublado por Olney Cazarré.


Dos trĂŞs Kirks originais, cada um teve um destino diferente. Camargo
ainda atua na área, como dono de sua própria empresa, a Mastersound.
Dênis Carvalho virou estrela da Globo. Astrogildo, infelizmente, já
concluiu seu teste do Kobayashi Maru. E o que Ă© pior, nenhum deles teve
a chance de, ao menos uma vez, dizer as célebres palavras
“audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.




A sequência de abertura da série

47 segundos - 176 kb - Mp3


106 107


Ao contrário do que foi feito na versão original em inglês e na
dublagem atual da empresa VTI-Rio, nas gravações da AIC não cabia ao
capitão Kirk o célebre discurso exibido na abertura da série, mas a um
narrador. O sortudo foi AntĂ´nio Celso, dublador de voz poderosa,
bastante parecida com a de Astrogildo. É a versão gravada com ele que
consta de todos os episĂłdios gravados pela AIC.


Problemas aos pingos


Apesar da paixĂŁo de todos os fĂŁs brasileiros de Jornada
pelas vozes e traduções originais, muitos erros eram bastante
aparentes, nĂŁo sĂł nos episĂłdios em si, como nos prĂłprios tĂ­tulos,
feitos sem muita pesquisa ou preocupação. “Friday’s Child” acabou virando “Sexta-feira”. “The Changeling” ficou “A Mudança” (numa Ăłbvia confusĂŁo entre “The Changeling” e “The Change”). “The Trouble With Tribbles” virou “O Problema”. E, para coroar, “All Our Yesterdays” acabou como “Todos os Nossos AmanhĂŁs”. Tudo bem que “AmanhĂŁ Ă© Ontem”, mas nĂŁo precisavam exagerar…


Em “The Paradise Syndrome”, Miramanee ficou
conhecida pelos brasileiros pelo nome Miranee. E alguns episĂłdios
sofriam de problemas mais intrĂ­nsecos ao processo de dublagem, e nĂŁo de
tradução. Um desses casos foi “A Piece of the Action”, onde Kirk e Spock nĂŁo foram dublados com aquele estilo de falar dos gangsters dos anos 20.




Kirk registra seu diário de bordo em

“The Lights of Zetar”

20 segundos - 66 kb - Mp3



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Somando-se a isso o fato de que dez episĂłdios dublados foram
destruĂ­dos em um incĂŞndio no fim dos anos 60 (quatro dos quais nem
chegaram a ser exibidos uma vez sequer), ficava cada vez mais claro que
uma nova dublagem seria necessária mais dia menos dia, os fãs querendo
ou nĂŁo.




Kirk se apresenta a Gary Seven em

“Assignment: Earth”

05 segundos - 16 kb - Mp3



110 111


A dublagem antiga aguentou as pontas até 1983, quando foi exibida
pela Ăşltima vez na Rede Bandeirantes. Mas em 1990, quando a Rede
Manchete resolveu voltar a exibir a série original de Jornada,
após vários anos no limbo, o sonho acabou. Constatou-se que, somados a
todos esses problemas, as gravações remanescentes não tinham qualidade
suficiente para voltar Ă  televisĂŁo. Chegava o momento de dar novas
vozes a Kirk, Spock, McCoy e cia.




Spock mostra seu apreço pelo gato em

“Assignment: Earth”

07 segundos - 26 kb - Mp3



112 113


Recrutando a tropa


Cristina Nastasi, então já envolvida com o processo de redublagem
dos episĂłdios, agora a cargo da VTI, era uma das fĂŁs de carteirinha das
vozes antigas. Ela conta que tentou encontrar os dubladores originais
para que eles mesmos refizessem o trabalho. Infelizmente, diz ela, foi
impossĂ­vel trazĂŞ-los a bordo.




Chekov e Sulu falam do amor de Scott em

“The Lights of Zetar”

07 segundos - 22 kb - Mp3



114 115


Entretanto, a nova equipe certamente era tĂŁo marcante quanto sua
predecessora. Garcia Junior foi chamado a interpretar Kirk. O dublador
tinha em seu currĂ­culo personagens como MacGyver. Para a sempre
complicada dublagem de Spock, o escolhido foi um veterano na arte de
interpretar personagens sem emoção: Márcio Seixas, sem dúvida um dos
maiores dubladores da atualidade. Quando chegou para levar Spock ao
portuguĂŞs, Seixas já trazia na bagagem o computador HAL 9000, de “2001
- Uma OdissĂ©ia no Espaço”, e diversos trabalhos conhecidos, como
dublagens de James Gardner e Clint Eastwood. O dublador também é
atualmente conhecido por diversos trabalhos junto Ă  Disney e quem
assiste Ă  versĂŁo animada de “Batman” tambĂ©m o conhece bem.




Kirk ordena retirada imediata em

“The Lights of Zetar”

04 segundos - 17 kb - Mp3



116 117


Para McCoy, a dublagem ficou a cargo de Newton Valério. Scotty foi
feito por Waldir Sant’Anna, Uhura por Lina Rossana, Sulu por Cleonir
Santos e Chekov por Marcos Ribeiro.




Mira Romaine, Chapel e McCoy falam em

“The Lights of Zetar”

17 segundos - 50 kb - Mp3



118 119


Na ocasiĂŁo, a Manchete encomendou 52 episĂłdios, o que equivaleu
aproximadamente Ă s duas primeiras temporadas. Outros 27 sĂł seriam
redublados no final dos anos 90, quando o canal USA resolveu exibir os
episódios restantes da série original. Enquanto isso, o pacote inicial
de episĂłdios foi reprisado ad eternum na televisĂŁo brasileira, incluindo aĂ­ passagens pela Record e pela Bandeirantes.




Kirk, Scotty, Uhura e Spock falam em

“The Lights of Zetar”

16 segundos - 49 kb - Mp3



120 121


Quando o USA resolveu bancar a tradução dos episódios restantes, o
elenco que havia feito a dublagem para a VTI já não mais trabalhava
para a empresa. Mais uma vez Nastasi tentou reunir a turma, ou ao menos
o trio Emerson Camargo, Márcio Seixas e Newton Valério. Acabou não
sendo possĂ­vel, e o elenco todo teve de ser escalado novamente.




Kirk, Spock e McCoy num final feliz em

“The Lights of Zetar”

53 segundos - 157 kb - Mp3



122 123


A Marco AntĂ´nio coube o capitĂŁo. Lauro Fabiano dublou Spock (por
apenas um punhado de episĂłdios –algum tempo depois, Márcio Seixas
voltaria ao personagem). Leonel Abrantes (que também dubla o chefe
O’Brien, de A Nova Geração e Deep Space Nine)
dublou McCoy. Carlos Seidl, Vânia Rocha, Malta Jr. e Mário Tupinambá
viraram Scotty, Uhura, Sulu e Chekov. Esse foi o time que concluiu a
série, na versão que é exibida atualmente pelo USA.


É difícil dizer qual é a melhor versão. Umas falam mais alto ao
coração, outras atraem pela razão. A discussão no plano do que é melhor
é até tola. O mais importante disso tudo é o caminho, os 35 anos de
tenras lembranças na memória de cada fã. O resto, amigo leitor, são
apenas palavras…


Artigo originalmente publicado no conteúdo clássico do Trek Brasilis em comemoração aos 35 anos de Jornada nas Estrelas.

Vozes saudosas… A dublagem original de Jornada nas Estrelas | Trek Brasilis: A Fonte de Jornada nas Estrelas em PortuguĂŞs



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