A Revolução Francesa de 1789 - Parte Um

Já que toquei no assunto, segue abaixo a primeira parte de um artigo publicado pelo grande historiador Voltaire Schilling sobre a RF.

Considera-se a Revolução Francesa de 1789 o acontecimento político e social mais espetacular e significativo da história contemporânea. Foi o maior levante de massas até então conhecido que fez por encerrar a sociedade feudal, abrindo caminho para a modernidade.


O alvorecer de uma nova era 


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O povo demolindo a Bastilha
Assinala a Revolução de 1789 a inauguração de uma nova era, um período em que não se aceitaria mais a dominação da nobreza, nem um sistema de privilégios baseado nos critérios de casta, determinados pelo nascimento. Só se admite, desde então, um governo que, legitimado constitucionalmente, é submetido ao controle do povo por meio de eleições periódicas. O lema da revolução, "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" (Liberté, Egalité, Fraternité) universalizou-se, tornando-se no transcorrer do século seguinte uma bandeira da humanidade inteira.



 Influência do Iluminismo 


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O gorro frígio, símbolo da liberdade conquistada
Ela foi conseqüência direta das idéias das luzes, difundidas pelos intelectuais e pensadores dos séculos XVII e XVIII, tais como John Locke, Montesquieu, Voltaire, Diderot, D'Holbach, D'Alembert, J.J. Rousseau, Condorcet e o filósofo Emanuel Kant, que, em geral, asseguravam ser o homem vocacionado ao progresso e ao auto-aperfeiçoamento ético. Para eles a ordem social não é divina, e sim construída pelos próprios homens, portanto sujeita a modificações, e a alterações substanciais. Era possível, portanto, segundo a maioria dos iluministas, por meio de um conjunto de reformas sociopolíticas, melhorar a situação jurídica e material de todos. O poder político, além de emanar do povo e em seu nome exercido, deveria, seguindo-se a sugestão de Locke e reafirmada por Montesquieu, ser submetido
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As luzes da liberdade espantam o fanatismo e a ignorância
a uma divisão harmônica, para evitar a tentação do despotismo. Cada um desses poderes - o executivo, o legislativo e o judiciário - é autônomo e respeitador da independência dos demais. As prerrogativas individuais, em grande parte extraídas dos direitos naturais, não só devem ser respeitadas pelos governantes como garantidas por eles. 






  O programa da revolução 

A Revolução de 1789 é o princípio da era moderna. Nela tudo teve seu início ou sua consagração: a separação do Estado da Igreja, a proclamação do Estado secular, a participação popular pelo voto, a instrução pública, estatal e gratuita, o serviço militar generalizado, os direitos da cidadania, o sistema de pesos e medidas decimal, a igualdade dos filhos perante a herança e
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La Méricourt, líder feminista
a igualdade de todos perante a lei, o divórcio, a abolição das torturas e dos castigos físicos, acompanhado do abrandamento das leis penais, os primórdios da emancipação feminina levada a diante por Théroigine de Méricourt, a extensão da cidadania aos judeus, a condenação da escravidão e a imorredoura idéia de que devemos viver em liberdade, igualdade e fraternidade. 







 
A convocação dos Estados Gerais 
 
Os reis da França não convocavam os Estados Gerais - organização integrada por representantes do clero, da nobreza e do povo - desde 1614. Centralizadores, convictos do absolutismo, os reis franceses desprezavam qualquer instituição que lhes criasse obstáculos ao uso irrestrito do poder. Naquele início de 1789, no entanto, Luís XVI resolveu chamar aquela antiga assembléia, cujas origens vinham dos tempos medievais, na tentativa de resolver a grave crise financeira que se alastrava pela França, ameaçando-a com o caos.
Em 24 de janeiro de 1789, o rei baixou um decreto instituindo as votações para a sua composição, tendo sua primeira reunião marcada para cinco de maio daquele ano, a ser realizada em Versalhes. O local não foi escolhido ao acaso: o Palácio de Versalhes, a morada do rei e sede do governo, era um templo de esplendor erguido por Luís XIV, o rei Sol, para celebrar a magnificência do absolutismo. Luís XVI pretendia de certa forma impressionar os deputados com a suntuosidade das instalações e também não interromper as suas caçadas pelos bosques vizinhos, enquanto os parlamentares tentariam tirar o reino do fundo do poço. 






O testemunho de Jefferson 
 
Thomas Jefferson, testemunha da cerimônia da abertura, comparou-a a uma imponente ópera, porém pouco conseguiu ouvir do discurso do mestre de cerimônias M. Dreux-Brézé, e quando chegou a vez de Jacques Necker, o celebrado ministro da Fazenda, além de sentir-se frustado com o pouco espaço concedido por ele às grandes reformas constitucionais que o Rapport du Roi, o Relatório do rei, prometera anteriormente, ainda que criticasse "o desejo exagerado de inovação", fez um
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J.J.Rousseau, inspirador teórico da revolução
discurso excessivamente técnico, recorrendo a palavras que poucos entenderam. Necker, além de mencionar que todos estavam ali por benemerência do rei, apresentou um déficit orçamentário de 56 milhões de livres (depois descobriu-se que chegava a 162 milhões!), o qual convocava a nação a pagar. Trocando em miúdos, a montanha parira um rato. Quando o rei e a rainha se retiraram, ouviu-se um uníssono Vive le Roi! Foi a última vez que escutou-se tal aclamação naquela assembléia. 








A meritocracia contra a aristocracia 


reprodução (tela de David)
O sóbrio mundo burguês
Em Versalhes, dois mundos se defrontaram. O primeiro deles era o mundo do privilégio composto pelos homens e mulheres dos salões, dos castelos, das mansardas, das grande propriedades fundiárias, um universo de bom gosto, de requinte e refinamento, que a renda da terra e os direitos feudais lhes asseguravam. Àquela altura, ele esteticamente se identificava com o rococó e com as paisagens bucólicas, antigas ou atuais, escapistas de um Boucher. A eles, muito próximo, encontrava-se a corporação clerical, os príncipes da Igreja, os teólogos e reitores eminentes, os altos dignatários que representavam os interesses de Roma no seio da sociedade francesa. Depois de terem neutralizado, no século anterior, a dissidência católica dos jansenistas, que tivera no filósofo Pascal a sua maior expressão, o corpo sacerdotal enfrentou um duríssimo embate com a família iluminista, particularmente contra o barão D'Holbach, um ateu assumido que exercera um grande influência, e contra Voltaire, que usara o gênio e a pena como um mortífero florete para expor as contradições da vida cristã e a hipocrisia do sacerdócio. 

reprodução (tela de Boucher)
A toalete da dama elegante
Naquele momento em Versalhes nobres e bispos irmanavam-se numa frente em comum contra o absolutismo (desejavam a restauração de antigas regalias suprimidas pelo rei) e contra o Terceiro Estado, que lá estava justamente para lhes podar as vantagens, os favores e prebendas escandalosas que ainda usufruíam. O outro mundo, o mundo burguês, era o do trabalho, do comércio, do negócio, da pequena fábrica, da vida sóbria em casas modestas, do ter que suar para ganhar o pão de cada dia, de viver de empreendimentos, de assumir riscos e, por vezes, desabar por causa deles. O seu dia-a-dia era probo, economizando os tostões para não ter que mendigar na velhice. Do seu labor e dos seus próximos é que o reino extraía a prosperidade que conheceu no século XVIII. Cada vez mais lhe parecia odioso o sistema ainda vigente na França, onde justamente quem trabalhava de sol a sol era punido com uma pesada canga tributária que lhe caía sobre as costas. Sentia-se um atlas carregando um peso morto na garupa. Tinham, os burgueses, que pôr um fim naquilo, ainda que não sabendo como, nem quando. O sistema de ordens, os privilégios do sangue e da casta, repentinamente pareceu-lhes insuportavelmente arcaico, injusto, abominável. O mundo que almejavam era o dos talentos. O que eles representavam eram a produção, os lucros e os salários, enquanto o outro mundo, o do privilégio, vivia da renda, dos tributos e da servidão. Em Versalhes, a meritocracia se insurgiria contra a aristocracia. 







A composição dos Estados Gerais 

Os Estados Gerais de 1789 compunham-se de 1.154 representantes: 291 deles eram deputados do clero, 285 da nobreza e 578 do Terceiro Estado (ordem que, genericamente, abrigava o povo e a burguesia). Na época, dos 25 milhões de franceses, apenas 120 mil pertenciam ao clero e 350 mil à nobreza (subdividida em nobreza togada, e a de "sangue", isto é, a aristocracia). Na representação dos Estados Gerais convocados, o povo, que perfazia a imensa maioria, tinha só dois parlamentares a mais. 

As diferenças entre os deputados do Terceiro Estado, da nobreza e do clero, não ocorriam só no comportamento e na maneira de vestir (os deputados do Terceiro Estado eram obrigados a usar o preto, enquanto os das ordens privilegiadas podiam trajar-se luxuosamente. Só não os fizeram falar de joelhos como se dava no costume antigo). Nos debates que convergiam para a formação de uma monarquia constitucional, os representantes do Terceiro Estado insistiam na abolição de antigos privilégios e na supressão da votação por estados. Desejavam que cada representante tivesse direito a um voto, o que daria maioria, ainda que apenas por dois votos, aos deputados do Terceiro Estado. Os eleitos pelo clero e pela nobreza resistiam, insistindo em manter o antigo sistema no qual cada ordem tinha um só voto, o que permitia aos nobres e ao clero continuar controlando a votação. 

Por detrás da insistência do Terceiro Estado, alinhava-se um descontentamento generalizado com a monarquia, com a inépcia do rei e com os desatinos da rainha Maria Antonieta, a Austríaca, pessoa das menos estimadas pelo povo francês em todos os tempos. 

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Estados gerais (abertura, 5/5/1789)

Original aqui.

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