Mais um texto interessante sobre Tolkien que encontrei aqui xeretando no meu acervo. Depois dessa série da Amazon vai ser difícil encontrar textos como esse. Antigamente o pessoal levava Tolkien a sério, como objeto de estudo mas sem fanatismos. Hoje a coisa anda assustadora. Por um lado, o neoliberlismo engolindo Tolkien após o falecimento de Christopher Tolkien. Por outro, grupos também liberais usam Tolkien para venderem a sua religião e outros, simplesmente vendem modismos. Espero que a sociedade Tolkiendili supere e sobreviva a tudo isso.
O Mundo de Tolkien - Uma Reflexão sobre a Terra-média
Para alguém que tenha lido JRR Tolkien, O Hobbit, O Senhor dos Anéis,
ou O Silmarillion e outros trabalhos relacionados; a introdução
completa ao mundo maravilhoso da Terra-média - sua história e
personagens - parece sugerir fortes traços alegóricos em assuntos como a
questão do gênero, raça e religião. Apesar da insistência no contrário,
escrita pelo autor na introdução de 'O Senhor dos Anéis'; o trabalho de
Tolkien é o produto de um visionário que enfim nos presenteia um mundo
alternativo usando nossos próprios elementos, talvez por meio da
contextualização de seus temas.
Como uma trilogia escrita por
um autor masculino, precisa-se reconhecer as teorias de Laura Mulvey
sobre o gênero em literatura e cinema, e sua forte concepção do 'olhar
masculino'. O Senhor dos Anéis tem uma avaliação um tanto definitiva e
chauvinista das mulheres como 'donzelas' que devem aderir ao
protecionismo 'masculino'. Isso pode ser claramente visto no papel de
Éowyn que representa o potencial de rebelião contra o sistema de valores
masculinos que caracteriza o mundo de Tolkien. Colocando de lado seu
feminismo para tomar a aparência de um soldado marchando para a "Batalha
nos Campos de Pelennor", e a ênfase evidente de Tolkien a importância
do seu sexo em seu confronto e vitória contra o Senhor dos Nazgûl; o
leitor é imediatamente informado sobre a poderosa contradição interna
entre a visão masculina de Tolkien, e sua convicção sobre o papel das
mulheres.
"...impedir-me ? Tu és tolo. Nenhum homem vivo pode
me impedir - zomba o Nazgûl do soldado disfarçado de nome Dernhelm, que
responde: "Mas não sou um homem mortal ! Você está olhando para uma
mulher... Éowyn..."
O que é interessante aqui, é que Éowyn teve
que divulgar seu sexo, e é esta super ênfase em seu sexo que diz muito
sobre a visão do autor sobre as mulheres. Os "cabelos claros (de Éowyn),
libertos de seus laços, reluziam num ouro pálido sobre seus ombros ",
novamente representa a convenção clássica da visão masculina.
Similarmente, em "The Merchant of Venice" de Willian Shakespeare, a
imagem da pura, casta e bela filha que Shakespeare descreve para Portia
nas cenas iniciais na peça; a imagem perfeita de uma 'dama' veneziana
contemporânea; é despedaçada quando Portia resolve vestir-se como um
advogado em defesa de Antonio contra a maldade de Shylock (...).
Evidentemente vemos em ambas, Éowyn e Portia, o insuspeito retrato das
mulheres como revolucionárias sociais que revoltam-se contra as ásperas
amarras do sistema patriarcal. Tolkien e Shakespeare se revelam na
construção dessas duas heroínas como supervisores desse sistema de
valores masculinos. Em ambos "O Senhor dos Anéis" e "The Merchant of
Venice" vemos tanto o suposto retrato de mulher, como Galadriel, Arwen e
a representação inicial de Portia, como o insuspeito retrato de mulher
que coloca seu feminismo à parte - Éowyn e a Portia posterior.
Ironicamente, Éowyn e Portia tiveram que tomar características
masculinas a fim de dominar a maldade do Senhor dos Espectros do Anel e
de Shylock. O que assustadoramente vemos, é que as mulheres devem se
tornar homens e penetrar o mundo dos homens isto é 'guerra' no Senhor
dos Anéis, e Veneza para Portia; para derrotar a maldade dos homens.
Subseqüentemente, o cenário de Belmont no "Mercador de Veneza", como um
seguro e estabelecido refúgio em oposição ao agito de Veneza, representa
o mundo em ordem das mulheres, muito semelhante a casa de Éowyn em
Edoras que ela também deixou para trás.
Deste modo as mulheres
no mundo de Tolkien são retratadas como donzelas 'puras' e 'castas' bem
na tradição de Shakespeare, Embora Éowyn represente uma subversão à esta
norma cultural, talvez uma ênfase de Tolkien (e Shakespeare) ao
potencial feminino em um mundo rígido patriarcal, em iludir os homens e
ser capaz de conseguir o mesmo, se não com maior gloria do que a de seus
correlativos masculinos.
A representação de um gênero
alternativo pode ser encontrada no trabalho de David Edding como em "The
Belgariad" onde em fortes personagens como a (...) feiticeira
Sephrenia, a soberana Ehlahna de Elenia, e o inquietante retrato das
'pequeninas' princesas Danae e Flute como avatares mortais da deusa
menina Aphreal, vemos o domínio das mulheres sobre os desejos dos
homens. O príncipe Sparhawk corresponde aos desejos destas mulheres, e
diante de sua filha Danae, como a deusa menina, vemos uma perversão
sobre a relação paterna tradicional entre pai e filha. Em Danae e Flute
como representações mortais da deusa menina Aphrael, a forte idolatria e
a citação casual da sua inferioridade à sua filha, sugerem talvez uma
espécie de pedofilia que é indicativa de todos os personagens adultos da
obra de Eddings. Em outro nível, Sparhawk como Annakha é revelado como
sendo filho da entidade Bhellion. Para O Senhor dos Anéis o papel de
filhos e pais é dividido, ainda que um tanto vago, pela complexa
genealogia entre os personagens.
Arwen é filha de Elrond e
Celebrían, embora tenha passado longos anos em Lórien. Na história de
"Aragorn e Arwen" Elrond não aprova o romance de Arwen e Aragorn com
base em discussões raciais e culturais.
Tolkien estabelece o
padrão para as relações entre raças no moderno gênero fantasia. A
divergência entre Elfos e Anões, o quase total conhecimento da
inferioridade de Orcs como subordinados do mal, representado em Saruman
em Orthanc e Sauron em Mordor no Senhor dos Anéis, e as diferenças entre
Humanos e Elfos, são explicadas claramente. Tolkien claramente
subordina a raça dos homens à 'luz' e imortalidade dos Elfos, que em
crescente cansaço da Terra-média, voltam-se para seu eterno lar
ancestral em Aman e a 'luz' de Valinor, no Oeste proibido além do mar.
No Silmarillion o enfraquecimento gradual dos Elfos da Terra-média é
registrado enquanto as tendências destrutivas dos homens são realçadas
no forte estilo de destruição do continente de Númenor. Os Anões são a
criação insubordinada do Vala Aulë, criando sua raça antes dos
'primogênitos' de Ilúvatar - os Elfos - trouxe ao Pai dos Valar uma
grande fúria.
"...por que fizeste isso? Diz Ilúvatar à Aulë:
Por que tentaste algo que sabes estar fora do teu poder e de tua
autoridade ?" E Aulë responde: "Como um filho ao pai ofereço-te essas
criaturas, obras das mãos que criaste..."
Então vemos uma
explicação sobre o atrito entre as raças dos Elfos e dos Anões, como
duas raças primárias, opostas, muito diferentes uma da outra. Para a
chegada dos homens, Tolkien coloca em O Silmarillion que eles são os
'usurpadores', e escreve-os como desconhecidos, inescrutáveis, malditos,
desajeitados, temerosos-da-noite, e filhos do sol... Tolkien tinha
entretanto uma interessante visão geral da humanidade.
Na obra de Tolkien, a questão da raça é o principal catalisador entre o
atrito social e a exploração. O envolvimento de Aragorn com Arwen é
inicialmente desprezado pelo pai dela, Elrond, que é ele próprio um
Meio-elfo, enquanto que Gimli e o Elfo Legolas superam seu atrito racial
na conclusão do Senhor dos Anéis. O Hobbit ganha em certo modo o
reconhecimento mundial. Ironicamente, os Hobbits e sua afetação são
muito parecidos conosco, enquanto as ocupações dos homens - os Hohirrim e
Gondor, unidos aos Elfos, Mordor e o Mago Saruman, Bombadil, os Ents
etc parecem distantes demais, estranhos e melodramáticos. "Estranhas são
as maneiras dos homens" Comenta Gimli com Legolas, e mais tarde ambos
chegam a um acordo quando Legolas declara "Se nós dois retornarmos a
salvo dos perigos que nos aguardam, vamos viajar juntos por um tempo.
Você vai visitar Fangorn comigo, e então eu vou com você ver o Abismo de
Helm."
A Terra-média, como nosso próprio mundo tem suas
instabilidades raciais. Os Orcs são as crianças da escuridão do Vala
caído Melkor, e se tornaram sinônimo de maldade, o produto de séculos de
cruzamento geneticamente perverso com os homens por Sauron; que como
Hitler, perseguiu e executou seu horror científico nos judeus em
Auschwitz. Os Elfos são o símbolo da luz e da imortalidade, e os homens
(e hobbits) possuem o potencial da destruição e da subjugação - é o que
Tolkien parece enfatizar no final do Silmarillion. Os finais de ambos, O
Silmarillion e O Senhor dos Anéis fazem um comentário tocante sobre o
fim de uma fase e o início de outra, do domínio do homem, enquanto os
Elfos desaparecem através do mar.
"...até que os mares do Mundo
Curvo foram se afastando abaixo dela, e os ventos do céu arredondado
não mais a perturbaram. E sustentada no alto, acima das névoas do mundo,
passou para o Antigo Oeste, e chegou o fim para os eldar de prosa e
verso..."
As conclusões do Silmarillion e do Senhor dos Anéis
são comoventes e sustentam uma mensagem alegórica poderosa. O final da
"Guerra do Anel" como na II Guerra Mundial, leva a uma mudança
sóciopolítica e cultural. O fascismo foi conquistado, mas o prenuncio da
poderosa tirania dos fundamentalistas soviéticos Marxistas e
Bolchevistas sobreviveu sob o pacto incompatível entre as forças
democráticas e a USSR, o que piorou com a guerra fria. Os Elfos
começaram a partir para o oeste através do mar, Sauron, como Hitler, se
foi. Como o "Oeste" superou as sombras do nazismo, os reinos ocidentais
da Terra-média derrotaram os exércitos orientais de Mordor. A batalha
pela liberdade contra a escravidão e o totalitarismo em O Senhor dos
Anéis está em paralelo direto às guerras mundiais e à história humana. A
paz é alcançada através da superação da paranóia cultural e social.
Denethor é estabelecido como símbolo desta paranóia que ameaça
desunificar o esforço coletivo em "O Senhor dos Anéis" quando toma sua
própria vida; como a USSR fez quando assinou seu tratado de paz com a
Alemanha nazista contra a aliança ocidental que esperava isolar e
confinar o nazismo; (e que Hitler traiu na invasão germânica à USSR na
"Operação Barbarossa" em 1943).
O que O Senhor dos Anéis parece
sugerir é que as diferenças sociais e raciais são superadas quando os
interesses e liberdades de cada um são ameaçados de invasão. Tolkien
fornece um paralelo fantástico com as guerras mundiais em seu romance,
no entanto ele próprio coloca no prólogo do romance que esta não é sua
intenção. Finalmente, um mundo de fantasia como a Terra-média só pode
ser criado com características do mundo real, afim de que o autor
transmita sua mensagem ao leitor inteligente e simpático.
Vista
em um contexto religioso, a Terra-média de Tolkien tem várias
suposições convincentes sobre a natureza da religião e que fornecem uma
poderosa mistura do Cristianismo ocidental e da mitologia clássica Em O
Silmarillion a longa guerra entre Melkor e os Valar carrega uma forte
semelhança com a ruína de Satan do paraíso, e o desejo de governar o
mundo na escuridão aplicável ao Apocalipse. Em Sauron e Saruman, vemos o
desejo de poder e o estabelecimento do 'culto' ritualístico. Em Angmar
há o culto ao Senhor do Escuro, rito sacrifical pagão oferecido a Sauron
e o culto de Mor-Sereg. O desejo de poder absoluto e aspiração ao
status de Deus formam a base da ideologia por trás da "Guerra do Anel".
Sauron quer ser como Melkor (seu mestre) e Saruman como Sauron. A
corrupção do poder constitui uma parte integrante da narrativa do Senhor
dos Anéis e da obra de Tolkien. A própria Galadriel admite sua forte
tentação ao anel de Frodo:
"...por muitos longos anos pensei o
que faria caso o Grande Anel me chegasse às mãos, e veja! Ele está agora
ao meu alcance. Você me oferece o Anel livremente! E no lugar do Senhor
do Escuro, você coloca uma Rainha... bela e terrível... mais forte que
os fundamentos da terra..."
Deste modo na obra de Tolkien, somos
apresentados a uma vaga exploração da divindade e religião. Os Elfos
são imortais, belos, quase semelhantes a Deus. Em O Silmarillion, somos
imediatamente apresentados ao enigma que é Eru, "...o Único...", que
criou os Valar da "chama imperecível". Eru é configurado por Tolkien a
mesma luz de nosso entendimento de Deus - como uma incógnita e toda
fonte universal de poder - como Brahma, o espírito supremo na religião
Hindi, ou o Deus clemente do Novo Testamento. Embora Eru e seus Valar
também carreguem um forte paralelo com Zeus - Rei dos Deuses no Monte
Olympus na mitologia Grega. Em romances mais recentes como "Dragon
Prince Trilogy" de Melanie Rawne, vemos a manifestação da "Deusa" dos
mitos druidas celtas e do oeste europeu (britânico) e reforçada em
"Pendragon Cycle" de Stephen Lawhead, que entre outras coisas,
representa o conflito entre a crença Druídica e a difusão do evangelho
cristão na Grã-Bretanha pós-romana.
"O Senhor dos Anéis é um
caleidoscópio dos mitos celta, nórdico e teutônico, assim como inclui as
técnicas medieval e gótica. Na construção dos Hobbits, Tolkien
diverte-se muito com a cultura rural britânica, enquanto aos Elfos e aos
Anões, e até mesmo aos 'humanos' Tolkien deu sua própria autonomia
cultural, língua e historia pormenorizada. Todavia, a Terra-média é um
mundo criado por si mesmo usando fatores de nosso próprio mundo, ao qual
respondemos repetidas vezes quando alguém relê a obra de Tolkien sobre a
Terra-média. "O Senhor dos Anéis é um romance épico, representando o
papel importante dos insignificantes Hobbits na derrota de Sauron. Não
podemos entender a cultura dos Elfos, Anões e homens de Gondor e de
Rohan, mas nos Hobbits, Tolkien criou um dos mais profundos papeis da
literatura Inglesa. O leitor reage a eles, porque talvez eles sejam a
conexão literal do leitor no mundo de Tolkien. Como eles aprendem muitas
coisas novas e magníficas sobre seu mundo, como um leitor - e por causa
disso, os Hobbits são talvez os representantes do leitor no mundo de
fantasia de Tolkien. Sem eles, "O Hobbit" e "O Senhor dos Anéis" seriam,
por outro lado, confusos e complexos.
Enfim, na obra de
Tolkien o leitor pode traduzir vários paralelos com nosso próprio mundo.
Tolkien escreveu quase todo o volume de "O Senhor dos Anéis" durante as
duas guerras mundiais, e certamente a aterradora realidade da guerra
deve ter inspirado Tolkien a escrever sobre 'A Guerra do Anel'.
Aparentemente, a Terra-média proporciona um escape à realidade de nosso
próprio mundo, embora esse esforço tenha somente sido brevemente tocado
na superfície de alguns elos alegóricos e semelhanças a sociedade
contemporânea. A este respeito, o leitor pode encontrar consolo e alívio
em "O Hobbit" e em "O Senhor dos Anéis", mas os problemas do mundo da
Terra-média são e teriam sido os problemas de nosso próprio mundo - e
isso talvez deixasse o leitor preocupado. O que Tolkien nos deu é um
mundo não tão diverso do nosso, mas no entanto diferente. Na verdade, a
alegoria talvez não tenha sido a intenção de Tolkien em sua obra, mas é o
que faz do leitor parte daquela obra. Tolkien em "O Hobbit" e em "O
Senhor dos Anéis", conduz com êxito o leitor através de seu mundo,
retendo uma posição de poder manipular nossas afinidades e emoções. Como
o sistema narrativo clássico, o equilíbrio é abalado, e não é
totalmente devolvido ao seu estado padrão e o romance termina com um ar
de incerteza. Finalmente, a Terra-média de Tolkien é uma experiência
forte e profunda, ainda que não importe quão magnífica e irreal possa
ser, é o produto da mente humana, e inevitavelmente, do mundo real.
Uma tradução de Claudia Dias
Bibliografia principal:
Tolkien, J.R.R. : The Lord of the Rings - Grafton 1992
Tolkien, J.R.R. : The Silmarillion - BCA 1992
Tolkien, J.R.R. : The Book of Lost Tales 2: Unwin Hynman Limited 1990
Eddings, David: The Belgariad: Harper Collins 1993
Lawhead, Stephen: The Pendragon Cycle: Lion 1992
Shakespeare, Willian: The Merchant of Venice
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