[M] Reis da polêmica - Descobertas arqueológicas trazem novas e controversas visões da Bíblia. O reino de Davi e Salomão foi um império glorioso ou um vilarejo?

Nota da Fê: Em tempos de seriados bíblicos na TV, um bom texto para estudo e reflexão. Retirado da edição 126 da National Geographic Brasil. Enjoy! Polegar para cima

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por Robert Draper

Sentada em um banco na Cidade Velha de Jerusalém, a mulher de rosto de lua cheia, toda agasa-lhada no outono gelado, come uma maçã enquanto examina a construção que lhe trouxe fama e dissabores. Não parece bem uma construção, pois são apenas algumas paredes baixas de pedra ao lado de um antigo muro de arrimo terraceado de 20 metros de altura. Mas, como a mulher é arqueóloga e essa é a sua descoberta, seus olhos veem o que pode ser imperceptível a outros. Ela vê a posição do edifício, em uma escarpa na parte norte da Cidade Velha de onde se avista abaixo o vale de Kidron, em Jerusalém, e imagina: é um mirante ideal para observar um reino. Visualiza os carpinteiros e pedreiros fenícios que erigiram a obra no século 10 a.C. E também os babilônios que a destruíram quatro séculos depois. Acima de tudo, imagina o homem que ela supõe ter encomendado e ocupado o edifício. Seu nome era Davi. Essa, ela declarou ao mundo, é muito provavelmente a casa mencionada no Livro 2 de Samuel: "Hirão, rei de Tiro, enviou [...] carpinteiros e pedreiros, que edificaram uma casa a Davi. Reconheceu Davi que o Senhor o confirmara rei sobre Israel, e que exaltara o seu reino por amor do seu povo".

O nome da mulher é Eilat Mazar. Mastigando e olhando, ela é a calma em pessoa, até que aparece um guia turístico. É um moço israelense acompanhado de um punhado de turistas que se plantam diante do banco para ver a construção. Assim que ele abre a boca, Eilat já sabe o que virá - o guia, ficamos sabendo, é seu ex-aluno de arqueologia. Traz turistas ao local e lhes diz, com toda a convicção, que aquele NÃO é o palácio de Davi e que todo o trabalho arqueológico na cidade de Davi não passa de um oportuno expediente dos israelenses de direita para expandir suas reivindicações territoriais na região e, com isso, desalojar palestinos.

De repente, Eilat se levanta de chofre e vai pisando duro até o guia turístico. Passa-lhe um sabão, metralhando-o no ritmo staccato da língua hebraica. Ele, passivamente, só a olha. Os turistas fitam-na, boquiabertos, até que ela vai embora furiosa. "É preciso ser muito forte", murmura Eilat enquanto anda. "Parece que todo mundo quer destruir o que a gente faz." A arqueóloga entra no carro. "Essa tensão me deixa doente", comenta, com ar abatido. "Está encurtando a minha vida."

Em nenhuma outra parte do mundo a arqueologia lembra tanto uma rixa de dois times arquirrivais. E uma das razões disso é Eilat Mazar. Quando ela anunciou em 2005 que provavelmente havia descoberto o palácio do rei Davi, foi como se fizesse veemente defesa de uma proposição da velha escola de arqueologia que está sob ataque há mais de um quarto de século: a ideia de que a descrição bíblica do império fundado por Davi e levado adiante por seu filho Salomão é historicamente exata. A contundente declaração de Eilat deu força àqueles cristãos e judeus do mundo todo para quem o Antigo Testamento pode e deve ser interpretado ao pé da letra. Seu pretenso achado tem um impacto ainda mais forte em Israel, onde a história de Davi e Salomão é entrelaçada às reivindicações históricas dos judeus à bíblica Terra de Sião.

De acordo com a Bíblia, um jovem pastor chamado Davi, da tribo de Judá, mata o gigante Golias, um filisteu da tribo inimiga. Davi é ungido rei de Judá após a morte de Saul, em fins do século 11 a.C., conquista Jerusalém, une o povo de Judá às tribos israelitas dispersas no norte e funda uma dinastia real que continua com Salomão durante boa parte do século 10 a.C. Mas, embora a Bíblia diga que Davi e Salomão transformaram o reino de Israel em um império poderoso e influente que se estendia do Mediterrâneo ao rio Jordão, de Damasco a Negev, há um probleminha: os arqueólogos, depois de procurar exaustivamente por décadas, não encontraram nenhum indício confiável de que Davi ou Salomão tenham construído qualquer coisa.

Foi então que Eilat tocou sua trombeta. "Ela sabia o que estava fazendo", afirma seu colega arqueólogo, o israelense David Ilan. "Entrou nessa briga decidida a causar polêmica."

Ilan duvida que Eilat tenha encontrado o palácio de Davi. "Minha intuição me diz que é uma construção do século 8 ou 9", diz ele. Ou seja, erigida no mínimo 100 anos depois da morte de Salomão, em 930 a.C. Críticos vão além e questionam os motivos de Eilat. Ressaltam que suas escavações foram financiadas por duas organizações, a Fundação Cidade de Davi e o Centro Shalem, dedicadas a reivindicar direitos territoriais para Israel. E zombam porque ela usa os métodos antiquados de antepassados arqueólogos, como os do avô, que não se constrangia em trabalhar com a pá numa mão e a Bíblia na outra.

A prática antes comum de usar o livro sagrado como guia arqueológico é contestada por ser um raciocínio circular, anticientífico - e quem mais se empenha contra ela é o questionador-mor da Universidade de Tel-Aviv, Israel Finkelstein, que dedicou a carreira a demolir estrondosamente hipóteses desse feitio. Ele e outros proponentes da "baixa cronologia" afirmam que o peso das evidências arqueológicas em Israel e seu entorno indica que as datas postuladas pelos estudiosos da Bíblia estão antecipadas em um século. As construções "salomônicas" escavadas por arqueólogos bíblicos ao longo de várias décadas recentes em Hazor, Gezer e Megiddo não foram erigidas no tempo de Davi e Salomão, argumenta ele; portanto, devem ter sido construídas por reis da dinastia Omride, no século 9 a.C., bem depois do reinado de Salomão. [Cont.]

Matéria Completa no Site Original: Reis da polêmica - National Geographic Brasil

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